quarta-feira, 21 de julho de 2021

Dia das trabalhadoras domésticas: motivos para lutar!

 

Renata Queiroz Dutra[1]

Falar sobre o trabalho doméstico nos remete a pensar o trabalho de cuidado e seu caráter fundamental para a manutenção e reprodução da vida humana. O cuidado, dedicado tanto a crianças, pessoas doentes e idosos, que dele dependem de forma mais intensa, mas pensado também como elemento fundamental para a existência digna e para a capacidade de trabalhar de toda e qualquer pessoa adulta, é um pilar central das sociedades humanas. Precisamos de higiene (dos ambientes em que habitamos e de nós mesmos/as), alimentação, cuidados básicos de saúde e repouso para que possamos trabalhar, estudar e realizar as demais atividades necessárias à sociedade. Sem o cuidado, nada disso seria possível.

Entretanto, historicamente existe uma divisão social e sexual do trabalho que imputa quase que exclusivamente às mulheres a atribuição do cuidado, como se os homens não fossem eticamente responsáveis pela manutenção de sua própria vida e da vida de outros sujeitos vulneráveis. Além disso, a sociedade invisibiliza e desvaloriza o trabalho de cuidado, como se ele sequer fosse uma espécie de trabalho, mas uma propensão “natural” das mulheres ou uma forma de manifestação de afeto.

Ainda que a realização do trabalho de cuidado possa estar envolvida em algum afeto, sobretudo quando realizado em favor de familiares e pessoas queridas, isso não faz com que ele não consuma tempo, energia ou que não exija habilidades, qualificações e planejamento para que seja executado. Tampouco faz com que ele deixe de criar um valor fundamental para uma sociedade do trabalho, que é o fato de que as pessoas que dele se beneficiam se habilitam para trabalhar em outras atividades e serem produtivas em razão do cuidado recebido. Como trabalho realizado pelas mulheres, essa função historicamente foi desvalorizada, seja em relação ao merecimento de remuneração, seja em relação ao próprio reconhecimento social dessa atividade.

A questão se torna ainda mais complexa quando pensamos que o trabalho de cuidado, por vezes, é exercido pelas mulheres em favor de suas próprias famílias, gratuitamente, mas, outras vezes, é exercido em favor de outras famílias, em troca de uma remuneração. Assim se diferenciam as relações de cuidado do trabalho doméstico, ainda que as atividades que os compõem sejam semelhantes.

Em sociedades como a brasileira, a ausência de políticas estatais de amparo aos trabalhadores e trabalhadoras em relação às demandas de cuidado (como creches, cozinhas e lavanderias comunitárias, entre outras) associada às estruturas escravagistas que marcaram a nossa formação histórica e que ainda hoje se desdobram nos modos de vida do presente, fazem com que muitas famílias contratem trabalho doméstico de outras mulheres, seja pela impossibilidade de conciliar a realização do próprio trabalho doméstico com suas atividades laborais, seja por não desejarem realizar tais tarefas em favor de suas próprias famílias. Um dos privilégios que as classes mais favorecidas economicamente têm no Brasil é a possibilidade de delegar o trabalho doméstico, pagando por esse serviço.

É importante lembrar, entretanto, que as pessoas que contratam e as pessoas que são contratadas para o trabalho doméstico no país costumam ter raça, gênero e classe bem definidas. Como reminiscência da escravidão, cuja abolição no país não se fez acompanhar imediatamente de políticas de inclusão e reparação da população negra que havia sido escravizada, a grande maioria da população negra, por muito tempo, não teve oportunidades de acesso à escolarização e acesso ao mercado formal de trabalho, ficando relegada ao trabalho informal de modo geral e, no caso das mulheres, ao trabalho doméstico. Embora tais relações já se desenvolvessem sob a condição de liberdade, não houve uma mudança significativa nas estruturas sociais materiais e simbólicas, o que fez com que, por muito tempo, o trabalho doméstico exercido sobretudo por mulheres negras, fosse visto como um trabalho de menor valor e que as pessoas que o exerciam fossem tratadas com menosprezo.

Quando as mulheres negras adentram o espaço do trabalho remunerado formal, o que acontece num processo tardio e subalternizado, como analisa Lélia Gonzalez (1979), a elas é negada a possibilidade de acessar postos de trabalho que aos poucos se feminizam (como atividades administrativas e secretariais no comércio e no setor de serviços), dada a sua baixa escolaridade. Assim, a elas é relegado sobretudo o espaço do trabalho doméstico, que, no entender de Lélia Gonzalez, abrange “uma série de atividades que marcam seu ‘lugar natural’: empregada doméstica, merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar, etc” (1979, p. 16). Portanto, o trabalho de cuidado remunerado, ao custo do qual se deu, em grande medida, a inserção das mulheres brancas no mercado de trabalho, e seus “espelhamentos” no espaço público, também em funções subalternas relacionadas à limpeza, cozinha e cuidados primários, foram o continuum possível de engajamento da força de trabalho das mulheres negras desde a formação do mercado de trabalho livre no Brasil.

A forma subalternizada de ver o trabalho doméstico não era apenas um comportamento individual ou social, mas se projetava na forma como o próprio Estado Brasileiro tratou, por muito tempo, o trabalho doméstico e as mulheres negras que majoritariamente o desempenhavam. O conjunto da legislação trabalhista brasileira foi formulado entre 1930 e 1945, tendo havido a promulgação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em 1943. Entretanto, essa lei era aplicável aos trabalhadores urbanos, com exceção das trabalhadoras domésticas, que ficaram sem uma proteção legal até o ano de 1972, quando foi editada a primeira Lei do Trabalho Doméstico (Lei 5.859/72). Essa lei de 1972, contudo, não garantia para trabalhadoras domésticas os mesmos direitos que os demais trabalhadores já tinham conquistado.

Uma série de justificativas muito pouco consistentes eram apresentadas para isso, como, por exemplo, o argumento de que o trabalho doméstico não gerava lucro, que o empregador doméstico não era uma empresa, mas uma família, e de que havia relações afetivas e de confiança especiais entre trabalhadoras domésticas e seus empregadores. Tais argumentos, que desconsideram a relevância do trabalho doméstico na cadeia de valor do trabalho no sistema capitalista e que maquiam sob o argumento do afeto uma série de violências e discriminações praticadas contra as trabalhadoras domésticas, serviam para negar direitos elementares a essas trabalhadoras, rebaixando os custos de sua contratação.

Foi em razão do acúmulo de lutas do movimento de trabalhadoras domésticas ao longo do século, que, na época da Constituinte de 1988[2], muitas empregadas domésticas enfrentaram deputados que eram patrões e conseguiram garantir, na Constituição, um aumento de seus direitos. Ainda assim, em 1988, a Constituição Brasileira reconheceu para as trabalhadoras domésticas apenas 10 dos 34 direitos que eram assegurados aos demais trabalhadores urbanos e rurais no seu artigo 7º. Embora o momento tenha sido de avanço, a discriminação persistia.

De lá para cá aconteceram avanços pontuais, com mudanças legislativas em 2006, que tiveram como protagonista a Deputada Benedita da Silva e as trabalhadoras domésticas se organizaram em sindicatos e federações (vale conhecer a FENATRAD, Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, entidade sindical muito combativa e atuante). Mas a principal modificação veio apenas em 2013.

No ano de 2011 a Organização Internacional do Trabalho editou a Convenção nº 189[3], que reconhecia direitos para as trabalhadoras domésticas em todo o mundo. Para ser parte dessa Convenção, o Estado Brasileiro precisou alterar a nossa Constituição e, também, criar uma nova Lei do trabalho doméstico, suprimindo as discriminações que estavam presentes na nossa legislação anterior. Esse foi um processo permeado por muito luta das trabalhadoras domésticas e por uma série de constrangimentos internacionais, até que o Congresso Nacional editasse tais medidas.

A partir da Emenda Constituição nº 72/2013, o artigo 7º da Constituição Federal, que enuncia os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, passou a prever expressamente que “são assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social” [4].   Ou seja, a integralidade dos direitos foi assegurada às trabalhadoras domésticas, ainda que entendendo-se que alguns deles deveriam considerar as peculiaridades do trabalho doméstico (sobretudo o fato de o empregador doméstico ser uma família e não uma empresa que exerce uma atividade econômica).

Depois dessa mudança na Constituição Federal, foi editada uma nova lei do trabalho doméstico, a Lei Complementar nº 150/2015[5], na qual os direitos assegurados na Constituição foram regulamentados. Para se ter ideia da dimensão dessa mudança, foi a primeira vez que as trabalhadoras domésticas no Brasil passaram a ter direito ao limite de jornada de 8 horas, um dos direitos mais elementares de uma legislação trabalhista, porque é a partir da quantidade de horas de trabalho que se fixa, de forma justa, o valor do salário. Também é importante ressaltar, para que não se perca a perspectiva crítica, que essa regulamentação, a pretexto de resguardar o empregador doméstico, também fez recuar, em alguns aspectos, a proteção conquistada com a Emenda Constituição, relativizando alguns direitos importantes. As disputas políticas sobre o trabalho doméstico no Brasil sempre foram acirradas e são manifestações dos nossos conflitos entre classes sociais.

Só em 2018 (7 anos depois de sua criação), o Brasil assinou (ou seja, aderiu) à Convenção Internacional nº 189 da OIT, que assegura direitos aos trabalhadores e trabalhadoras domésticos. Todavia, ainda seguimos disputando a efetividade dos direitos que foram reconhecidos e a mudança dessa cultura hegemônica sobre o trabalho doméstico que prevalece no país. Duas situações revelam que ainda temos muito por que lutar.

Primeiro, a legislação brasileira reconheceu que os direitos trabalhistas assegurados na legislação valiam apenas para as empregadas domésticas (aquelas que trabalham para uma mesma família mais de duas vezes por semana), e não para as chamadas trabalhadoras diaristas, o que exclui da proteção uma parcela importante dessas trabalhadoras.

A outra situação veio com a pandemia da COVID-19, quando vieram a público notícias de empregadas domésticas contaminadas pelos seus patrões (a primeira morte por Covid no Brasil ocorreu no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon: vitimou-se uma trabalhadora doméstica de 63 anos que contraiu a doença a partir do contato com seus empregadores, que haviam viajado ao exterior), de trabalhadoras domésticas que, em sua grande maioria, foram ou dispensadas sem salário (39% das diaristas) ou recrutadas a continuar trabalhando durante a pandemia (23% das diaristas e 39% daquelas com vínculo de emprego), com risco de contágio durante os deslocamentos e no contato com as famílias destinatárias dos seus cuidados; e, ainda, de trabalhadoras que foram mantidas forçadamente em isolamento social com os patrões, sem poder retornar a suas famílias, para evitar contaminar os empregadores, configurando-se em alguns casos o cárcere privado. Isso fez com que a FENATRAD lançasse a campanha “Cuide de quem te cuida”, demandando que os patrões mantivessem o pagamento dos salários das trabalhadoras domésticas e também se engajasse em campanhas contra o trabalho doméstico análogo ao escravo.

Todo esse cenário mostra o quanto nesse dia das trabalhadoras domésticas, que sequer é uma data oficialmente reconhecida pelo Estado[6], mas certamente celebrada pelos sindicatos e movimentos sociais, temos ainda muitas lutas a travar pela valorização, proteção e garantia da dignidade e da cidadania daquelas que exercem o fundamental trabalho de cuidado doméstico.

 

SUGESTÕES DE LEITURA

BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf

Coronavírus no Brasil: 39% dos patrões dispensaram diaristas sem pagamento durante pandemia, aponta pesquisa. Uol Economia. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/22/conoravirus-no-brasil-39-dos-patroes-dispensaram-diaristas-sem-pagamento-durante-pandemia.htm

Empregadas são obrigadas a ficar na casa dos patrões 'enquanto a pandemia durar'. Correio 24 horas. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/empregadas-sao-obrigadas-a-ficar-na-casa-dos-patroes-enquanto-a-pandemia-durar/

GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos lingüísticos e políticos da exploração da mulher. Comunicação apresentada no 8º Encontro Nacional da Latin merican Studies Association Pittsburgh, 5 a 7 de abril de 1979.

LOPES, Juliana Araújo. Constitucionalismo brasileiro em pretuguês: trabalhadoras domésticas e lutas por direitos. 2020. 329 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.

RAMOS, Gabriela Pires. “Como se fosse da família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. 2018. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

SANTANA, Raquel. O trabalho de cuidado remunerado em domicílio como espécie jurídica do trabalho doméstico no Brasil: uma abordagem justrabalhista à luz da trilogia literária de Carolina Maria de Jesus. 255 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Orientação: Profa. Dra. Gabriela Neves Delgado. Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2020.

VIEIRA, Regina Stela Correia. O cuidado como trabalho: uma interpelação do direito do trabalho a partir da perspectiva de gênero (Tese de Doutorado). PPGD-USP. 2018.

PodCast “Cuidar Verbo Coletivo” (Spotify), por Regina Stela Correia Vieira e Bruna Angoti, Episódio 6.



[1] Professora Adjunta de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília.

[2] Assembleia Geral na qual foi discutida e votada a atual Constituição Brasileira, documento jurídico e político mais importante do nosso país.

[6] O dia da empregada doméstica, em referência a Santa Zita, é reconhecido como sendo o dia 27 de abril. Entretanto, movimentos sociais organizados reivindicam o dia 22 de julho como Dia Internacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas.