Renata
Queiroz Dutra[1]
Falar sobre o trabalho doméstico nos
remete a pensar o trabalho de cuidado e seu caráter fundamental para a
manutenção e reprodução da vida humana. O cuidado, dedicado tanto a crianças,
pessoas doentes e idosos, que dele dependem de forma mais intensa, mas pensado também
como elemento fundamental para a existência digna e para a capacidade de
trabalhar de toda e qualquer pessoa adulta, é um pilar central das sociedades
humanas. Precisamos de higiene (dos ambientes em que habitamos e de nós mesmos/as),
alimentação, cuidados básicos de saúde e repouso para que possamos trabalhar,
estudar e realizar as demais atividades necessárias à sociedade. Sem o cuidado,
nada disso seria possível.
Entretanto, historicamente existe uma
divisão social e sexual do trabalho que imputa quase que exclusivamente às
mulheres a atribuição do cuidado, como se os homens não fossem eticamente
responsáveis pela manutenção de sua própria vida e da vida de outros sujeitos
vulneráveis. Além disso, a sociedade invisibiliza e desvaloriza o trabalho de
cuidado, como se ele sequer fosse uma espécie de trabalho, mas uma propensão “natural”
das mulheres ou uma forma de manifestação de afeto.
Ainda que a realização do trabalho de
cuidado possa estar envolvida em algum afeto, sobretudo quando realizado em
favor de familiares e pessoas queridas, isso não faz com que ele não consuma
tempo, energia ou que não exija habilidades, qualificações e planejamento para
que seja executado. Tampouco faz com que ele deixe de criar um valor
fundamental para uma sociedade do trabalho, que é o fato de que as pessoas que
dele se beneficiam se habilitam para trabalhar em outras atividades e serem
produtivas em razão do cuidado recebido. Como trabalho realizado pelas
mulheres, essa função historicamente foi desvalorizada, seja em relação ao
merecimento de remuneração, seja em relação ao próprio reconhecimento social
dessa atividade.
A questão se torna ainda mais complexa
quando pensamos que o trabalho de cuidado, por vezes, é exercido pelas mulheres
em favor de suas próprias famílias, gratuitamente, mas, outras vezes, é
exercido em favor de outras famílias, em troca de uma remuneração. Assim se
diferenciam as relações de cuidado do trabalho doméstico, ainda que as
atividades que os compõem sejam semelhantes.
Em sociedades como a brasileira, a
ausência de políticas estatais de amparo aos trabalhadores e trabalhadoras em
relação às demandas de cuidado (como creches, cozinhas e lavanderias
comunitárias, entre outras) associada às estruturas escravagistas que marcaram
a nossa formação histórica e que ainda hoje se desdobram nos modos de vida do presente,
fazem com que muitas famílias contratem trabalho doméstico de outras mulheres,
seja pela impossibilidade de conciliar a realização do próprio trabalho
doméstico com suas atividades laborais, seja por não desejarem realizar tais
tarefas em favor de suas próprias famílias. Um dos privilégios que as classes
mais favorecidas economicamente têm no Brasil é a possibilidade de delegar o
trabalho doméstico, pagando por esse serviço.
É importante lembrar,
entretanto, que as pessoas que contratam e as pessoas que são contratadas para
o trabalho doméstico no país costumam ter raça, gênero e classe bem definidas.
Como reminiscência da escravidão, cuja abolição no país não se fez acompanhar
imediatamente de políticas de inclusão e reparação da população negra que havia
sido escravizada, a grande maioria da população negra, por muito tempo, não
teve oportunidades de acesso à escolarização e acesso ao mercado formal de
trabalho, ficando relegada ao trabalho informal de modo geral e, no caso das
mulheres, ao trabalho doméstico. Embora tais relações já se desenvolvessem sob
a condição de liberdade, não houve uma mudança significativa nas estruturas
sociais materiais e simbólicas, o que fez com que, por muito tempo, o trabalho
doméstico exercido sobretudo por mulheres negras, fosse visto como um trabalho
de menor valor e que as pessoas que o exerciam fossem tratadas com menosprezo.
Quando as mulheres negras
adentram o espaço do trabalho remunerado formal, o que acontece num processo
tardio e subalternizado, como analisa Lélia Gonzalez (1979), a elas é negada a
possibilidade de acessar postos de trabalho que aos poucos se feminizam (como
atividades administrativas e secretariais no comércio e no setor de serviços),
dada a sua baixa escolaridade. Assim, a elas é relegado sobretudo o espaço do
trabalho doméstico, que, no entender de Lélia Gonzalez, abrange “uma série de
atividades que marcam seu ‘lugar natural’: empregada doméstica, merendeira na
rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar, etc” (1979, p.
16). Portanto, o trabalho de cuidado remunerado, ao custo do qual se deu, em
grande medida, a inserção das mulheres brancas no mercado de trabalho, e seus
“espelhamentos” no espaço público, também em funções subalternas relacionadas à
limpeza, cozinha e cuidados primários, foram o continuum possível de
engajamento da força de trabalho das mulheres negras desde a formação do
mercado de trabalho livre no Brasil.
A forma subalternizada de ver o trabalho
doméstico não era apenas um comportamento individual ou social, mas se
projetava na forma como o próprio Estado Brasileiro tratou, por muito tempo, o
trabalho doméstico e as mulheres negras que majoritariamente o desempenhavam. O
conjunto da legislação trabalhista brasileira foi formulado entre 1930 e 1945,
tendo havido a promulgação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em 1943.
Entretanto, essa lei era aplicável aos trabalhadores urbanos, com exceção
das trabalhadoras domésticas, que ficaram sem uma proteção legal até o ano
de 1972, quando foi editada a primeira Lei do Trabalho Doméstico (Lei 5.859/72).
Essa lei de 1972, contudo, não garantia para trabalhadoras domésticas os mesmos
direitos que os demais trabalhadores já tinham conquistado.
Uma série de justificativas muito pouco
consistentes eram apresentadas para isso, como, por exemplo, o argumento de que
o trabalho doméstico não gerava lucro, que o empregador doméstico não era uma
empresa, mas uma família, e de que havia relações afetivas e de confiança
especiais entre trabalhadoras domésticas e seus empregadores. Tais argumentos,
que desconsideram a relevância do trabalho doméstico na cadeia de valor do
trabalho no sistema capitalista e que maquiam sob o argumento do afeto uma
série de violências e discriminações praticadas contra as trabalhadoras
domésticas, serviam para negar direitos elementares a essas trabalhadoras,
rebaixando os custos de sua contratação.
Foi em razão do acúmulo de lutas do
movimento de trabalhadoras domésticas ao longo do século, que, na época da
Constituinte de 1988[2], muitas empregadas
domésticas enfrentaram deputados que eram patrões e conseguiram garantir, na
Constituição, um aumento de seus direitos. Ainda assim, em 1988, a Constituição
Brasileira reconheceu para as trabalhadoras domésticas apenas 10 dos 34
direitos que eram assegurados aos demais trabalhadores urbanos e rurais no seu artigo
7º. Embora o momento tenha sido de avanço, a discriminação persistia.
De lá para cá aconteceram avanços
pontuais, com mudanças legislativas em 2006, que tiveram como protagonista a
Deputada Benedita da Silva e as trabalhadoras domésticas se organizaram em
sindicatos e federações (vale conhecer a FENATRAD, Federação Nacional das
Trabalhadoras Domésticas, entidade sindical muito combativa e atuante). Mas a
principal modificação veio apenas em 2013.
No ano de 2011 a Organização Internacional
do Trabalho editou a Convenção nº 189[3], que reconhecia direitos
para as trabalhadoras domésticas em todo o mundo. Para ser parte dessa
Convenção, o Estado Brasileiro precisou alterar a nossa Constituição e, também,
criar uma nova Lei do trabalho doméstico, suprimindo as discriminações que
estavam presentes na nossa legislação anterior. Esse foi um processo permeado
por muito luta das trabalhadoras domésticas e por uma série de constrangimentos
internacionais, até que o Congresso Nacional editasse tais medidas.
A partir da Emenda Constituição nº 72/2013,
o artigo 7º da Constituição Federal, que enuncia os direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, passou a prever expressamente que “são assegurados à
categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV,
VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX,
XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a
simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e
acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os
previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua
integração à previdência social” [4]. Ou seja,
a integralidade dos direitos foi assegurada às trabalhadoras domésticas, ainda
que entendendo-se que alguns deles deveriam considerar as peculiaridades do
trabalho doméstico (sobretudo o fato de o empregador doméstico ser uma família
e não uma empresa que exerce uma atividade econômica).
Depois dessa mudança na Constituição Federal,
foi editada uma nova lei do trabalho doméstico, a Lei Complementar nº 150/2015[5], na qual os direitos
assegurados na Constituição foram regulamentados. Para se ter ideia da dimensão
dessa mudança, foi a primeira vez que as trabalhadoras domésticas no Brasil
passaram a ter direito ao limite de jornada de 8 horas, um dos direitos mais
elementares de uma legislação trabalhista, porque é a partir da quantidade de
horas de trabalho que se fixa, de forma justa, o valor do salário. Também é
importante ressaltar, para que não se perca a perspectiva crítica, que essa
regulamentação, a pretexto de resguardar o empregador doméstico, também fez
recuar, em alguns aspectos, a proteção conquistada com a Emenda Constituição,
relativizando alguns direitos importantes. As disputas políticas sobre o
trabalho doméstico no Brasil sempre foram acirradas e são manifestações dos
nossos conflitos entre classes sociais.
Só em 2018 (7 anos depois de sua criação),
o Brasil assinou (ou seja, aderiu) à Convenção Internacional nº 189 da OIT, que
assegura direitos aos trabalhadores e trabalhadoras domésticos. Todavia, ainda
seguimos disputando a efetividade dos direitos que foram reconhecidos e a
mudança dessa cultura hegemônica sobre o trabalho doméstico que prevalece no
país. Duas situações revelam que ainda temos muito por que lutar.
Primeiro, a legislação brasileira
reconheceu que os direitos trabalhistas assegurados na legislação valiam apenas
para as empregadas domésticas (aquelas que trabalham para uma mesma família
mais de duas vezes por semana), e não para as chamadas trabalhadoras diaristas,
o que exclui da proteção uma parcela importante dessas trabalhadoras.
A outra situação veio com a pandemia da
COVID-19, quando vieram a público notícias de empregadas domésticas
contaminadas pelos seus patrões (a primeira morte por Covid no Brasil ocorreu
no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon: vitimou-se uma trabalhadora doméstica
de 63 anos que contraiu a doença a partir do contato com seus empregadores, que
haviam viajado ao exterior), de trabalhadoras domésticas que, em sua grande
maioria, foram ou dispensadas sem salário (39% das diaristas) ou recrutadas a
continuar trabalhando durante a pandemia (23% das diaristas e 39% daquelas com
vínculo de emprego), com risco de contágio durante os deslocamentos e no
contato com as famílias destinatárias dos seus cuidados; e, ainda, de
trabalhadoras que foram mantidas forçadamente em isolamento social com os
patrões, sem poder retornar a suas famílias, para evitar contaminar os
empregadores, configurando-se em alguns casos o cárcere privado. Isso fez com
que a FENATRAD lançasse a campanha “Cuide de quem te cuida”, demandando que os
patrões mantivessem o pagamento dos salários das trabalhadoras domésticas e também
se engajasse em campanhas contra o trabalho doméstico análogo ao escravo.
Todo esse cenário mostra o quanto nesse
dia das trabalhadoras domésticas, que sequer é uma data oficialmente
reconhecida pelo Estado[6], mas certamente celebrada
pelos sindicatos e movimentos sociais, temos ainda muitas lutas a travar pela
valorização, proteção e garantia da dignidade e da cidadania daquelas que
exercem o fundamental trabalho de cuidado doméstico.
SUGESTÕES
DE LEITURA
BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões
para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. 2019. Disponível
em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf
Coronavírus no Brasil: 39% dos patrões dispensaram
diaristas sem pagamento durante pandemia, aponta pesquisa. Uol Economia.
Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/22/conoravirus-no-brasil-39-dos-patroes-dispensaram-diaristas-sem-pagamento-durante-pandemia.htm
Empregadas
são obrigadas a ficar na casa dos patrões 'enquanto a pandemia durar'. Correio 24 horas. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/empregadas-sao-obrigadas-a-ficar-na-casa-dos-patroes-enquanto-a-pandemia-durar/
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos
lingüísticos e políticos da exploração da mulher. Comunicação apresentada
no 8º Encontro Nacional da Latin merican Studies Association Pittsburgh, 5 a 7
de abril de 1979.
LOPES, Juliana Araújo. Constitucionalismo brasileiro em pretuguês: trabalhadoras
domésticas e lutas por direitos. 2020. 329 f. Dissertação (Mestrado em Direito)
- Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
RAMOS, Gabriela Pires. “Como se fosse da
família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de
1987/1988. 2018. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
SANTANA, Raquel. O trabalho de cuidado
remunerado em domicílio como espécie jurídica do trabalho doméstico no Brasil:
uma abordagem justrabalhista à luz da trilogia literária de Carolina Maria de
Jesus. 255 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Orientação: Profa. Dra.
Gabriela Neves Delgado. Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB),
Brasília, 2020.
VIEIRA, Regina Stela Correia. O cuidado como
trabalho: uma interpelação do direito do trabalho a partir da perspectiva
de gênero (Tese de Doutorado). PPGD-USP. 2018.
PodCast “Cuidar Verbo Coletivo”
(Spotify), por Regina Stela Correia Vieira e Bruna Angoti, Episódio 6.
[1] Professora Adjunta de Direito do
Trabalho da Universidade de Brasília.
[2]
Assembleia Geral na qual foi
discutida e votada a atual Constituição Brasileira, documento jurídico e
político mais importante do nosso país.
[3] É possível consultar a convenção
internacional aqui: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_169517.pdf
[4]É possível consultar a Constituição
aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm#art7p
[5] Você
pode acessar a lei aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp150.htm
[6]
O dia da empregada doméstica,
em referência a Santa Zita, é reconhecido como sendo o dia 27 de abril.
Entretanto, movimentos sociais organizados reivindicam o dia 22 de julho como
Dia Internacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas.